ADORO SER MULHER

Sabine Lichtenfels, transcrição de um discurso livre, 2000

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Estou a tentar pôr em palavras algo que encontrei em muitas mulheres – nos seus desejos, medos e necessidades e nos seus anseios mais íntimos. No entanto, o que direi não será necessariamente verdade para todas as mulheres. Estou a tentar pintar a imagem de um arquétipo feminino, que pode ser útil no início de um processo global de cura.

Sou mulher. Estou grata por isso, porque gosto de ser mulher.

Se dito de forma absolutamente honesta, fazer tal declaração exige, por si só, uma mudança fundamental na mundivisão das mulheres, ligando-nos de novo com as nossas fontes mais belas e verdadeiras. Exige que me liberte do colete de forças social que durante séculos me impôs imagens que não correspondem à minha verdadeira fonte universal de vida.

A perturbação histórica que me desligou da fonte de conhecimento feminino reflecte-se na história bíblica da Queda. Desde então, todas as mulheres, como descendentes de Eva, todo o género feminino, dizem, pecou com ela. Tertuliano, um antigo Padre da Igreja, tinha o seguinte para dizer sobre o sexo feminino:

“…assim, a vossa culpa tem de manter-se viva. Vós permitistes que o mal entrasse… Primeiramente, desrespeitastes a lei divina e, depois, enganastes aquele que nem o diabo conseguiu seduzir. Foi assim que, com tanta facilidade, condenastes o homem, a imagem de Deus. Por causa da vossa culpa, i.e., em nome da morte, o Filho de Deus teve também de morrer.”

Os mitos ainda mais antigos sobre a história da Criação, relacionados com Eva, foram esquecidos. Eva significava originalmente “mãe de todas as coisas vivas.” Muitos dos povos antigos viam a deusa e a serpente como avós. Imagens religiosas mostram Eva enquanto ela dá vida ao homem, enquanto a serpente se enrola na macieira, que simboliza a árvore da vida. A humanidade foi expulsa do Paraíso mediante uma mudança cultural histórica e, de acordo com a Cabala, o paraíso na Terra apenas pode ser restaurado através da reunificação dos dois sexos. Até o próprio Deus teve que ser reunificado com a sua contraparte feminina, chamada “Sheshina”, a Eva divina. A reconexão com as fontes femininas primordiais parece ser um passo essencial neste caminho. Àquilo que precisa de acontecer historicamente, eu chamo de “cultura da parceria”. Este pensamento livre compreende uma imagem de parceria que já não está dependente de quaisquer condições, mas que acontece naturalmente entre dois seres que se amam livremente, e que pode incluir muitos outros homens e mulheres ao longo da sua viagem no amor. Este tipo de fidelidade surge de uma percepção e compreensão livre e empática do mundo.

O meu Desejo Biológico por Comunidade

Na história antiga, a fogueira era o centro social e o espaço sagrado de uma comunidade. As mulheres estavam no centro, não apenas para um homem e para os seus filhos, mas para a tribo inteira. Dentro de mim, existe um desejo arcaico, original e elementar que pede comunidade. Pede por formas de vida que estejam outra vez integradas num contexto mais amplo. Na minhas células, pareço transportar uma memória original, lembrando-me de uma forma antiga de coexistência matriarcal. (…) Quero viver numa comunidade de homens e mulheres, com crianças, animais e plantas, de forma a que não tenha que esconder dos outros a minha verdadeira natureza. Percepção e contacto são fontes de vida tão elementares como a respiração. Se estas forem proporcionadas, então eu amo ser mulher, pois assim consigo, em absoluto, ser mulher. A minha realização enquanto mulher ocorreu sempre em comunidade. Este desejo biológico básico vive ainda hoje nas minhas células. Sob as condições sociais actuais, sou forçada a comprimir este desejo por contacto, permanência e fidelidade em formas demasiado limitativas. Precisamos de uma comunidade maior de confiança, para viver o Eros e o amor de forma correspondente à minha verdadeira feminilidade. A criação de uma cultura humana de paz depende de conseguirmos ou não construir comunidades funcionais. É até estranho que as pessoas consigam viver sem comunidade. Na cultura patriarcal ocidental, todos nós fomos arrancados da nossa base natural, tribal, universal. Hoje, as comunidades falham, sobretudo, por causa da questão do amor, fruto de problemas não resolvidos relacionados com competição e ciúmes.

Sou um Ser Sexual

Nas culturas primordiais, todos estávamos ligados com a Mãe Terra. Estávamos ao seu serviço. Amor é o que chamávamos a esta ligação com a vida. Todos éramos uma grande família interligada e todas as relações amorosas estavam integradas num todo maior. Não existiam relações amorosas privadas.

Neste ponto, chegamos a um aspecto essencial da minha existência feminina e que é o mais reprimido e negado: a sexualidade. Sou mulher. E sendo mulher, sou um ser sexual. E gosto de ser um ser sexual. Ainda hoje, no séc. XXI, esta declaração, saída da boca de uma mulher, requer uma coragem revolucionária. E poucas mulheres têm esta coragem, apesar de estarmos, supostamente, a viver numa era de liberdade sexual. Tal afirmação requer que deixemos a vergonha, o medo da violência, a repressão e o castigo para trás; requer que abandonemos falsas moralidades, o medo da inveja da concorrência e as imagens normativas de beleza. Exige que abandonemos os conceitos religiosos da nossa cultura patriarcal, o velho conceito de amor e desespero para com os homens.  E temos também que nos deixar de comparações e stress relacionados com a performance sexual. Não haverá quase nada que a mulher não tem de abandonar para poder fazer esta declaração livremente, sem ficar secretamente com um peso na consciência.

Um tremendo medo da sexualidade foi gravado historicamente nas nossas células femininas, desde o início da era patriarcal. O medo aumenta assim que a nossa afirmação sexual não se direcciona apenas para um único homem. Imagens de violência, alienação e destruição das mulheres, imagens históricas de atrocidades sexuais, guardadas como medo sedimentado nas células das mulheres, despertam assim que o tópico da sexualidade vem à superfície. No entanto, o medo e a crueldade associados à sexualidade não fazem parte da sexualidade em si, mas são o resultado de milhares de anos de repressão sexual e abuso. (…)

O Meu Conceito de Parceria

Enquanto mulher livre, desejo ter uma parceria com um homem ao qual nem me subjugue, nem lhe vire as costas, nem me sobreponha a ele, assumindo o papel de sua mãe. Sendo eu heterossexual, digo: Preciso dos homens. Mas não preciso de um homem como dominador, nem como marido dominado pela mulher, nem no seu velho papel de professor e mestre. Eu quero-o como um amante verdadeiramente potente e sensual, como alguém que conhece o amor sensual. (…) Já não o vou apegar a mim com truques, pois sei que a chantagem destrói aquilo que amámos originalmente um no outro. Vou assegurar-me que aconteçam encontros livres e apaixonados com homens, da forma que desejo há milhares de anos. Eros é naturalmente livre, não pode ser confinado a fluir em canais artificiais. A iluminação que procuro não ocorre no além, mas nas minhas células, de forma terrena e elementar. É de uma natureza sexual, completamente. Refiro-me agora ao antigo conhecimento de mistério feminino, que lentamente recordamos e que nos poderá conduzir a uma mudança cultural fundamental. Contudo, esta mudança ocorrerá apenas se virmos a sexualidade como uma fonte sagrada de conhecimento e amor universal (…)

Vou apoiar os homens mostrando-lhes o que amo e desejo neles, e o que não gosto ou não desejo. Quando me rendo verdadeiramente a um homem, incluindo sexualmente, não me torno dependente, mas livre. Apenas quando nego este tipo de entrega, entro em relações restritas e exclusivas, exigindo pessoalmente o amor de um homem. Ainda assim, o Eros chama-nos para nos abrirmos e participarmos na realidade sensual que se encontra para além de todas as restrições do casamento. O próprio Eros tem um poder anárquico que transcende todas as leis. Reconhecer a realidade erótica dá lugar a um amor de maior continuidade e intimidade entre duas pessoas – e esta ligação não se pode basear em proibições e limitações. Ao revelar-me mais plenamente ao outro, posso percorrer um caminho de entendimento que conduz a outros níveis de fidelidade, mais profundos do que alguma vez seria possível num casamento baseado na exclusão dos outros.

Conhecimento Sexual Primordial

As antigas culturas matriarcais olhavam a sexualidade como um aspecto da nossa ligação íntima à natureza e à deusa. Nos rituais de fertilidade sexual, celebrávamos o próprio Eros. Estas eram celebrações cósmicas e, ao mesmo tempo, uma expressão de gratidão para com a Mãe Terra. Durante estes rituais, nós, mulheres, podiamos mostrar e revelar publicamente o nosso desejo sensual, e não apenas diante de um só homem. Tanto homens como mulheres ofertavam o seu Eros uns aos outros como forma de servir e agradecer à Mãe Terra. Uma mulher que tentasse prender um homem a si, falhara no seu serviço no templo do amor.

Este tipo de encontro sexual, elementar, simples e poderoso foi banido na nossa cultura. Amor e sexualidade foram separados. Historicamente, isto deu origem, por um lado, ao trovador romântico, que admirava e idolatrava o amor e a sexualidade, declarando-os, assim, sacrossantos. Por outro lado, criou os agressores sexuais que seguiram a força elementar do desejo proibido. Banir os aspectos do sagrado e da paixão da sexualidade levou ao sadismo e ao masoquismo, dando azo à violência indescritível que tivemos de atravessar durante a era patriarcal.

Para atingir a realização que desejamos, precisamos de integrar o aspecto sagrado da sexualidade. Precisamos de formas de comunidade onde esta verdade possa ser vivida. (…) O meu anseio religioso feminino não precisa de igrejas nem de altares. As religiões patriarcais impuseram-se reprimindo a nossa realidade erótica e sexual. Elas foram uma ferramenta de poder contra a autoridade erótica das culturas femininas. Eva e a serpente simbolizaram este banimento patriarcal da sexualidade, expulsando-nos para fora do paraíso e condenando-nos a nós, mulheres, como malfeitoras. Há, contudo, uma componente sagrada na própria vida que não pode ser expulsa e que permaneceu intacta ao longo dos milénios de destruição e repressão.

No princípio do séc. XIX, uma freira escreveu:

“É suficiente elevar o teu espírito a Deus, depois disso nenhum acto é pecado, não importa o que seja (…) o amor a Deus e o amor ao teu vizinho são os mais elevados mandamentos. Um homem que se una a Deus com a ajuda de uma mulher está a seguir os dois mandamentos. O mesmo é verdade para alguém que eleve o seu espírito a Deus e retire prazer com o mesmo sexo ou sozinho (…) Praticar tais actos, que erradamente são descritos como pecaminosos, é a verdadeira pureza que foi ordenada por Deus, e sem os quais nenhum ser humano pode adquirir conhecimento dele.”

Esta é uma expressão de como a sabedoria matriarcal ancestral conseguiu sobreviver ao longo dos séculos, apesar de toda a alienação e perseguição da igreja e da Inquisição. Este tipo de conhecimento sexual elementar está actualmente a ressurgir veementemente.

Enquanto mulher, vou desenvolver-me culturalmente e historicamente para me tornar uma forte cuidadora da Mãe Terra. Vou ajudar a gerar consciência sobre esta questão no maior número de mulheres possível. A Terra é tão física quanto nós. Trata-se de despertar um conhecimento celular nos nossos corpos. Podemos aceder a ele quando nos relacionamos com os outros mediante um certo estado de alerta, percepção e presença, e tornando-nos presentes sensualmente para esta Terra. Este tipo de consciência dará também origem a um conceito completamente novo de ecologia.

Encontrar de Novo a Confiança Elementar

Aqui, encontramos a confiança elementar que há muito perdemos. É a confiança nas forças elementares da própria natureza. Baseados nesta confiança, é possível ligarmo-nos a estas forças vitais de forma a que elas nos protejam. A ligação com estas forças dá-nos uma óptima oportunidade para nos realizarmos. Isso exige que eu me coloque totalmente ao serviço da Terra e de todos os seres. É necessário fazê-lo, apesar da grande destruição que actualmente envolve o planeta.

Nesse sentido, subscrevo de livre vontade a frase bíblica “Segue-me, pois estou contigo todos os dias até ao fim do mundo”. Neste caso, não sigo um guru, mas rendo-me por completo ao amor da Terra, da Deusa. Imagina a confiança sensual que entra nas nossas células quando seguimos esta frase de tal forma que nenhum medo nos pode invadir, porque entendemos as forças protectoras de crescimento na natureza e podemos ligar-nos com elas, tanto fisicamente como espiritualmente. (…)

Se percorremos este caminho, chegaremos ao conhecimento celular primário das nossas células femininas. Elas transportam a informação necessária para a nossa realização. É como a memória de um sonho arcaico, de um estado pré-histórico, onde uma cultura de paz já foi vivida.

Baseada nesta nova perspectiva, desenvolverei uma nova relação comigo mesma enquanto mulher, um ser histórico. Já não sou guiada por líderes e leis patriarcais, mas pelas forças universais inerentes à Terra, e ao sonho original de paraíso inerente à matéria. Nesse sentido, a minha liberdade e a minha necessidade conduzem-me ao serviço à Mãe Terra.

Este é um excerto editado, do livro “Temple of Love” [“Templo do Amor”] por Sabine Lichtenfels

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