“Fontes Vivas”: uma celebração das fontes no concelho de Odemira

A 23 de Junho de 2019, alguns de nós e várias pessoas da nossa região visitaram as fontes públicas para limpeza, decoração e celebração – revivendo a tradição portuguesa antiga pelo dia de S. João. Tais “peregrinações” tiveram lugar nas aldeias de Relíquias, Luzianes-Gare, São Luís, São Martinho das Amoreiras e Vale de Santiago em colaboração com as juntas de freguesias – uma ação com potencial para o futuro. Tendo em vista as crises climática e da água, relembrando como homenagear e cuidar dos recursos naturais e ciclos tornar-se-á cada vez mais importante em Portugal e em todo o Mundo.

Barbara Kovats & Martin Winiecki, 19 de Julho de 2019

 

Na tradição cristã, o dia 24 de Junho é celebrado como a festa do nascimento de João Baptista – Dia de S. João. Este dia está intimamente ligado ao solstício de Verão, que tem lugar entre os dias 20 e 22 de Junho. Em quase todas as tradições indígenas (ou pagãs), os solstícios são celebrados em particular como tempos sagrados nos quais as pessoas conscientemente se ligam aos grandes ciclos e força da vida.

O presidente da junta de freguesia de Relíquias, Daniel Balinhas, diz: “Tanto quanto nos lembramos, as pessoas desta região sempre visitaram, decoraram e celebraram as fontes no dia de S. João, que era sempre um feriado.” Esta tradição estava ainda viva aqui, há 50 anos, quando, como criança, ele se lembra ainda de ter participado. Explica como as pessoas tinham por hábito caiar as fontes de véspera. No dia 24 de Junho, toda a aldeia de levantava antes do amanhecer e caminhava em peregrinação até à fonte. Os homens e rapazes carregavam as infusas com as duas asas (o barril para o género masculino) enfeitadas e as mulheres e raparigas carregavam a de uma asa apenas (a cantarinha para o género feminino).

As pessoas enfeitavam as fontes com flores, cantavam cantigas e no final partilhavam a comida que tinham trazido. “Esse era um bom dia!”, dizem os aldeãos que ainda se lembram desses tempos. Os que não tinham nada para comer eram convidados a juntarem-se ao banquete, mesmo que não pudessem contribuir com nada. E aqueles que tinham um pouco mais ofereciam pão e azeite aos mais pobres.

As fontes não eram apenas usadas como água para beber, mas também para se regarem as hortas – com um sistema de irrigação que funcionava por gravidade. Nos anos 70, quando as casas ficaram ligadas ao abastecimento público de água, e se começaram a usar geradores a gasóleo para bombear a água dos poços, as pessoas começaram a negligenciar as fontes. Não apenas as fontes cairam em desuso, mas as pessoas também se foram afastando cada vez mais da sua sensibilidade ecológica original, e da sua consciência de como dependiam da água, da Terra, das plantas e dos animais. Hoje, algumas aldeias na nossa região, como Relíquias, são abastecidas de água potável, através de camiões-cisterna que a trazem de distâncias de 30 km (antes tendo sido conduzida por canais a 150 km de distância da origem) e que foi “limpa” com químicos.

A ideia da iniciativa das Fontes Vivas surgiu no Outono de 2018 durante um encontro com amigos da rede regional sobre o tema da água, em Tamera. Teve grande ressonância, tanto de pessoas mais idosas que ainda se lembravam da tradição de S. João na sua infância e adolescência, como das gerações mais jovens e de pessoas que se mudaram para esta região. Grupos de cidadãos muito interessados, associações e freguesias no concelho de Odemira co-organizaram estas ações de forma autónoma. Juntos, limpámos e cuidámos das fontes, ouvimos histórias sobre esta tradição, cantámos e aprendemos cantigas populares relacionadas com as fontes do Dia de S. João e também partilhámos a comida num piquenique comum.

Em Relíquias enfeitámos a Fonte do Atravessado com flores e plantas: menta, erva-cidreira, alecrim, limonete, mentrasto e cravinas. O Daniel Balinhas também trouxe avenca, acrescentando que esta planta era um sinal da boa qualidade da água. E mostrou também uma variedade de cravina com uma fragrância muito particular. Ele disse que no passado, as pessoas cuidavam destas plantas, de modo a que no Dia de S. João estivessem em flor. Não é interessante que de todas as coisas, esta flor, que se tornou o símbolo da revolução Portuguesa e da libertação do fascismo em 1974, está tão intimamente ligada a um costume antigo de cuidar da água?

À medida que ficámos junto à fonte , a entoar cantigas locais e ouvir histórias da ligação das gentes da terra à água, tornou-se muito claro que juntarmo-nos em comunidade para homenagear a água como fonte de vida é uma primeira resposta alcançável à actual crise da água. A cada vez mais crescente centralização dos recursos e a gestão artificial de água favorecem a desconexação das pessoas das fontes da vida, que são a razão para começarmos a tratar a água desta maneira em primeiro lugar. Tais ações em comunidade servem como ponto de reconexão – para outros seres humanos, para os seres da natureza que dependem da mesma fonte de água como nós, e para a Terra em si mesma, que necessita de todos os seus sistemas de vida intactos para prover uma abundância de recursos de apoio à vida.

Além disso, um simples ritual como este desperta imagens de uma cultura original sã. Quase podemos imaginar as mulheres estariam junto às fontes com as suas infusas, deitando água aos homens para os abençoar e baptizar. Na chamada tradição pagã, o acto de deitar água ou submergir em água é um momento de transição de um estado para outro – uma iniciação numa nova fase da vida.

Nesta ação, o passado encontra-se com o futuro. Daniel Balinhas está seguro: no próximo ano a 24 de Junho, voltaremos à fonte com mais pessoas da comunidade local e mais aldeias farão o mesmo, porque “ a água é algo que diz respeito a todos e nos liga a todos”.

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